Devaneio

A casa parecia mais vazia que nunca. Dirigiu-se ao sótão e sentou-se no chão, bem ao centro. Nada fez por alguns minutos, apenas olhou ao redor como se fosse sua primeira vez ali. Fechou os olhos, respirou fundo, espirrou umas duas vezes por conta da poeira, mas não se deixou desconcentrar. Sua mente foi invadida por um turbilhão de imagens que pareciam extremamente vivas. Abriu os olhos, piscou algumas vezes e levou a mão ao peito. A dor que vinha sendo ignorada esperneava por atenção. Era a dor de uma facada. Não, uma não. Várias. Engatinhou até o canto esquerdo do cômodo, o único onde havia mobília – uma mesinha baixa com um envelope fechado endereçado à Ella e por cima uma fina camada de poeira. Já encarava aquele pedaço de papel há várias semanas sem coragem de espiá-lo sabe lá Deus o porquê. Pegou vagarosamente, como se fosse um animal feroz do qual você se aproxima mais que cautelosamente temendo ser atacado.

"O meu mundo começou a desabar dois anos atrás e em uma avalanche venho puxando-lhe junto. Não é justo. Você tem toda uma vida diante de ti e não posso lhe privar de vivê-la.

Odeie-me se quiser, tem toda liberdade de fazê-lo, mas lembre-se de que as palavras aqui escritas sempre doerão mais em mim do que em qualquer um. Eu te amo."

Deixou-se tombar batendo de leve com a cabeça no piso de madeira. Sentia-se sufocada e já era tempo pra deixar-se explodir. Uma gota, pesada, quente e salgada saltou de um de seus olhos enquanto um grito de agonia era cuspido de sua garganta. Irrompeu em soluços.

"There goes my hero, he's ordinary."